Conto de Outono – crítica por Lucas Bueno

Éric Rohmer, o último dos Cahiers a ser imortalizado como diretor, atingiu uma maturidade formal ímpar nos seus primeiros Contos Morais de longa-metragem, na segunda metade dos anos 60. Isso não quer dizer que seus curtas e longas lançados antes d’A Colecionadora sejam de algum modo ruins, mas Rohmer parece ter encontrado a si mesmo (junto com uma ética de produção apropriada para ele, com equipes muito reduzidas) depois de alguns experimentos menos expressivos do ponto de vista estético e temático (como O Signo do Leão ou o divertidíssimo curta que ele dirigiu para a coletânea Paris vista por…). O Rohmer que conhecemos e que dirigiu os filmes pelos quais nos apaixonamos encontra um eixo mais sólido a partir de 1967.

 A mise-en-scène impecável de filmes como Minha Noite com Ela, Joelho de Claire e Amor à Tarde, com o uso elegante e sensual das cores (e do p&b) e a valorização do espaço (e de seus atores no espaço, igualmente) é de uma beleza que, apesar de extremamente rigorosa, é também refrescante, agradável e única. Todos os planos (sejam eles grandes planos gerais nos quais assistimos durante muito tempo belas montanhas ou singelos planos conjuntos de quatro jovens sentados à mesa) são belos.

Apesar desse estilo visual do diretor ser muito consistente através das muitas décadas de trabalho, alguns experimentos visuais diferentes foram realizados a partir dos anos 70 – como esquecer do granulado de A Mulher do Aviador oudos filmes digitais do século XXI? Além disso, dependendo do filme, o recorte estético (quais elementos da mise-en-scène são mais valorizados) muda bastante, ainda que o estilo do autor permaneça rigoroso e coeso. Isso pode parecer óbvio (afinal, as histórias e personagens mudam e o diretor permanece), mas na prática Rohmer construiu uma filmografia ao mesmo tempo extremamente autoral e revigorante a cada filme – como esquecer das flores roxas envolvendo Arielle Dombasle como num quadro de Matisse em Pauline na Praia ou da valorização da arquitetura em O Amigo da Minha Amiga? Aqui vale pontuar o trabalho de Rohmer enquanto crítico, que sempre buscou uma conversa do cinema com as outras artes, como no grande O Celuloide e o Mármore, e que, ao mesmo tempo absorvendo ao máximo da pintura e da arquitetura, seus filmes parecem ter uma independência sublime enquanto cinema, principalmente no espaço fílmico – na imersão e êxtase causada no espectador pelos elementos distribuídos no espaço (matéria-prima do cinema).

Além disso, Rohmer é conhecido por dividir grande parte de sua filmografia em séries – há os Contos Morais, todos envolvendo dilemas de um protagonista que deseja uma mulher inalcançável, as Comédias e Provérbios, cujas narrativas partem de alguma frase de sabedoria popular, e os quatro Contos das Estações. O Conto de Outono é o último desses filmes, lançado em 1998, e conta a história de uma Béatrice Romand solteirona, de sua amiga (Marie Rivière) e da nora (Alexia Portal), que estão decididas a arrumar um parceiro para ela em segredo. O problema é que Marie Rivière, ao colocar um anúncio no jornal para encontrar um homem para Béatrice, acaba comparecendo ao encontro e criando certo laço com o solitário Alain Libolt, enquanto Alexia Portal acha que a única maneira de conseguir ver seu ex (um professor de filosofia bem mais velho, interpretado por Didier Sandre) de maneira amigável é juntando a ele e Béatrice Romand como casal. Assim, uma bola de neve de mal-entendidos e emoções conflitantes começa a se formar.

O Outono é uma estação de transição, e Rohmer incorpora esse tema não só na narrativa em geral, mas em todas as interações e diálogos entre os personagens, diálogos esses sempre meticulosos e reveladores, mas ditos por atores muito talentosos e que trazem uma naturalidade (e leveza) própria da vida. A transição entre a juventude e a vida adulta, por exemplo, está presente tanto na incompatível relação da aluna com seu professor bem mais velho quanto na metáfora do vinho cultivado na vinícola da protagonista, e também nos abismos geracionais e familiares da narrativa (Béatrice é muito mais intima da nora do que do filho, por exemplo). O tema também está presente no pano de fundo – os campos e cidadezinhas nos quais a história se passa estão passando por um processo de modernização. O tempo passa, as coisas mudam e Rohmer tem plena consciência disso ao chamar para o filme duas atrizes que participam de seus filmes há muitos anos (no caso de Romand, desde muito moça).

O Outono é também a estação da ambiguidade, da indecisão, onde as aparentes contradições se aproximam. Parece ser a estação perfeita para um filme do Rohmer, que lida sempre com as contradições da alma humana (apesar de lembrarmos sempre do contraste entre os extremos que são as praias de Pauline ou do Conto de Verão e dos invernos cortantes de Minha Noite com Ela e Amor À Tarde). Marie Rivière diz: “Gostaria que todos os homens me amassem, especialmente os que eu não amo”. As contradições do espírito humano convivem plenamente e formam uma paisagem única – como as usinas nucleares no meio dos idílicos campos do interior da França, uma imagem recorrente ao longo do filme.

A atmosfera que impera no Conto de Outono é leve e divertida. Enquanto somos engolidos pela beleza e elegância em Joelho de Claire (que também é um grande filme), aqui acompanhamos todo o suspense da trama com um sorriso no rosto. A cena na qual Marie Rivière revela para Alain Libolt que seus encontros foram na realidade arranjados para sua amiga é ao mesmo tempo uma grande cena de suspense (Rohmer é um grande estudioso de Hitchcock) e um dos momentos mais engraçados em qualquer filme do diretor. Os personagens passam por dilemas, e Béatrice especialmente sofre manipulações de todos os lados, mesmo que na melhor das intenções. Ainda assim tudo dá certo, e a risada das duas amigas Rivière e Romand, ao final, é puro deleite. O trabalho com atores nos filmes de Rohmer é sempre notável. No Outono, grande parte da leveza é conferida por eles.

Nota-se aqui também o trabalho mais contido com as cores – a atmosfera outonal pede cores esmaecidas e desbotadas – mas muito bonitas. Tematicamente rico, com a mise-en-scène Rohmerica de sempre, mas com uma certa leveza muito bem-vinda na trama e nas relações, o Conto de Outono é um grande filme e um grande filme do Rohmer.


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