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Uma das regras incertas do cinema é que filmes podem ser resumidos em duas categorias, “filmes das seis” e “filmes das nove”. A maioria dos casos são filmes das nove e isso não é demérito nenhum . Você chega de casa do trabalho, come alguma coisa e vai direto para o cinema e aproveita o espetáculo. Logo caí no sono, sozinho ou acompanhado, independente com doces sonhos que não serão perturbados pela acidez do que você acabou de assistir.
Um filme das seis requer mais organização, ingressos comprados com antecedência, uma mesa reservada, os amigos certos. Você precisa disso, para que se tudo for de acordo com o plano você passará a segunda metade da noite se debruçando sob o filme, seu impacto, seus temas pra lá e pra cá. Logo Quando Duas Mulheres Pecam (1966) é um filme das seis, porém não te deixará com o maior dos apetites. Assim como O Franco Atirador (1978) ou Platoon (1986) funcionam como filmes das nove por mais de sua tematica e apresentação. O Leitor (2008) é um filme das nove que acredita ser um filme das seis. Feitiço do tempo (1993) o exato oposto. A Fita Branca (2009) é um filme das 9 se eu já assisti algum na vida.
Anthony Lane, 2008
A ideia dessa categorização veio do crítico Anthony Lane, crítico de cinema britânico o qual escrevia para o New Yorker. Em uma de suas profiles pieces (artigos sobre o realizador) Happy Haneke, Lane tenta esclarecer que A Fita Branca (seu último filme durante o lançamento do artigo) e todos seus filmes são “filmes das seis” assim como Bergman apenas tem filmes das seis.
Por mais bem escrito e interessante que seja o artigo (o qual você pode ler em sua integralidade aqui) o conceito que mais ressoa na minha cabeça é a rotulagem dos filmes das seis e filmes das nove. Nunca tinha usado essa categorização, porém após a leitura acredito ser capaz de colocar qualquer filme para essa posição. Crepúsculo em Tóquio (1957) é um filme das seis, Scott Pilgrim (2010) é um das nove, Speed Racer parece um filme das nove, mas é um filme das seis, Forma da Água (2017) parece um filme das seis, mas é um filme das nove.
O mais interessante é o quão neutro é a classificação, Baleia (2022) é um filme das seis terrível, enquanto Banshees de Inisherin (2022) é um ótimo filme das nove. Além de já acreditar que alguma forma do mesmo agrupamento já exista naturalmente para cada um, assistir a última Chick Flick da Netflix para mim nas noites que já estou cansado faz muito mais sentido do que tentar completar a filmografia dramática do Mizoguchi, esses filmes são mais minhas tardes de sábado do que minhas noites de terça.
Anthony Lane é um dos críticos mais interessantes em atividade, com sua escrita descritiva muito única, sempre com metáforas as quais enriquecem a leitura fílmica do espectador e leitor de seus artigos. E sua “neutralidade” em relação com o que se critica continua muito presente. Lane, irá fazer perfil de realizadores, longos artigos como seu último perfil do diretor Marco Bellochio, mas nunca deixando de lado novos filmes como seu artigo em O Urso do Pó Branco ou meu favorito dos últimos tempos seu texto sobre A Baleia.
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Éric Rohmer, o último dos Cahiers a ser imortalizado como diretor, atingiu uma maturidade formal ímpar nos seus primeiros Contos Morais de longa-metragem, na segunda metade dos anos 60. Isso não quer dizer que seus curtas e longas lançados antes d’A Colecionadora sejam de algum modo ruins, mas Rohmer parece ter encontrado a si mesmo (junto com uma ética de produção apropriada para ele, com equipes muito reduzidas) depois de alguns experimentos menos expressivos do ponto de vista estético e temático (como O Signo do Leão ou o divertidíssimo curta que ele dirigiu para a coletânea Paris vista por…). O Rohmer que conhecemos e que dirigiu os filmes pelos quais nos apaixonamos encontra um eixo mais sólido a partir de 1967.
A mise-en-scène impecável de filmes como Minha Noite com Ela, Joelho de Claire e Amor à Tarde, com o uso elegante e sensual das cores (e do p&b) e a valorização do espaço (e de seus atores no espaço, igualmente) é de uma beleza que, apesar de extremamente rigorosa, é também refrescante, agradável e única. Todos os planos (sejam eles grandes planos gerais nos quais assistimos durante muito tempo belas montanhas ou singelos planos conjuntos de quatro jovens sentados à mesa) são belos.
Apesar desse estilo visual do diretor ser muito consistente através das muitas décadas de trabalho, alguns experimentos visuais diferentes foram realizados a partir dos anos 70 – como esquecer do granulado de A Mulher do Aviador oudos filmes digitais do século XXI? Além disso, dependendo do filme, o recorte estético (quais elementos da mise-en-scène são mais valorizados) muda bastante, ainda que o estilo do autor permaneça rigoroso e coeso. Isso pode parecer óbvio (afinal, as histórias e personagens mudam e o diretor permanece), mas na prática Rohmer construiu uma filmografia ao mesmo tempo extremamente autoral e revigorante a cada filme – como esquecer das flores roxas envolvendo Arielle Dombasle como num quadro de Matisse em Pauline na Praia ou da valorização da arquitetura em O Amigo da Minha Amiga? Aqui vale pontuar o trabalho de Rohmer enquanto crítico, que sempre buscou uma conversa do cinema com as outras artes, como no grande O Celuloide e o Mármore, e que, ao mesmo tempo absorvendo ao máximo da pintura e da arquitetura, seus filmes parecem ter uma independência sublime enquanto cinema, principalmente no espaço fílmico – na imersão e êxtase causada no espectador pelos elementos distribuídos no espaço (matéria-prima do cinema).

Além disso, Rohmer é conhecido por dividir grande parte de sua filmografia em séries – há os Contos Morais, todos envolvendo dilemas de um protagonista que deseja uma mulher inalcançável, as Comédias e Provérbios, cujas narrativas partem de alguma frase de sabedoria popular, e os quatro Contos das Estações. O Conto de Outono é o último desses filmes, lançado em 1998, e conta a história de uma Béatrice Romand solteirona, de sua amiga (Marie Rivière) e da nora (Alexia Portal), que estão decididas a arrumar um parceiro para ela em segredo. O problema é que Marie Rivière, ao colocar um anúncio no jornal para encontrar um homem para Béatrice, acaba comparecendo ao encontro e criando certo laço com o solitário Alain Libolt, enquanto Alexia Portal acha que a única maneira de conseguir ver seu ex (um professor de filosofia bem mais velho, interpretado por Didier Sandre) de maneira amigável é juntando a ele e Béatrice Romand como casal. Assim, uma bola de neve de mal-entendidos e emoções conflitantes começa a se formar.
O Outono é uma estação de transição, e Rohmer incorpora esse tema não só na narrativa em geral, mas em todas as interações e diálogos entre os personagens, diálogos esses sempre meticulosos e reveladores, mas ditos por atores muito talentosos e que trazem uma naturalidade (e leveza) própria da vida. A transição entre a juventude e a vida adulta, por exemplo, está presente tanto na incompatível relação da aluna com seu professor bem mais velho quanto na metáfora do vinho cultivado na vinícola da protagonista, e também nos abismos geracionais e familiares da narrativa (Béatrice é muito mais intima da nora do que do filho, por exemplo). O tema também está presente no pano de fundo – os campos e cidadezinhas nos quais a história se passa estão passando por um processo de modernização. O tempo passa, as coisas mudam e Rohmer tem plena consciência disso ao chamar para o filme duas atrizes que participam de seus filmes há muitos anos (no caso de Romand, desde muito moça).
O Outono é também a estação da ambiguidade, da indecisão, onde as aparentes contradições se aproximam. Parece ser a estação perfeita para um filme do Rohmer, que lida sempre com as contradições da alma humana (apesar de lembrarmos sempre do contraste entre os extremos que são as praias de Pauline ou do Conto de Verão e dos invernos cortantes de Minha Noite com Ela e Amor À Tarde). Marie Rivière diz: “Gostaria que todos os homens me amassem, especialmente os que eu não amo”. As contradições do espírito humano convivem plenamente e formam uma paisagem única – como as usinas nucleares no meio dos idílicos campos do interior da França, uma imagem recorrente ao longo do filme.
A atmosfera que impera no Conto de Outono é leve e divertida. Enquanto somos engolidos pela beleza e elegância em Joelho de Claire (que também é um grande filme), aqui acompanhamos todo o suspense da trama com um sorriso no rosto. A cena na qual Marie Rivière revela para Alain Libolt que seus encontros foram na realidade arranjados para sua amiga é ao mesmo tempo uma grande cena de suspense (Rohmer é um grande estudioso de Hitchcock) e um dos momentos mais engraçados em qualquer filme do diretor. Os personagens passam por dilemas, e Béatrice especialmente sofre manipulações de todos os lados, mesmo que na melhor das intenções. Ainda assim tudo dá certo, e a risada das duas amigas Rivière e Romand, ao final, é puro deleite. O trabalho com atores nos filmes de Rohmer é sempre notável. No Outono, grande parte da leveza é conferida por eles.
Nota-se aqui também o trabalho mais contido com as cores – a atmosfera outonal pede cores esmaecidas e desbotadas – mas muito bonitas. Tematicamente rico, com a mise-en-scène Rohmerica de sempre, mas com uma certa leveza muito bem-vinda na trama e nas relações, o Conto de Outono é um grande filme e um grande filme do Rohmer.
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Montagem por
@mafessantossPara este artigo estarei optando por utilizar múltiplas traduções do termo de Mark Fisher “hauntology”. As traduções utilizadas serão “assombrologia”, “rondologia”,”fantologia” “espectrologia” e também alternarei com o próprio termo em inglês “hauntology”. Acredito que seja a melhor forma de transliteração para o termo.
Ruído Branco o novo filme de Noah Baumbach, adaptado do romance de mesmo nome do autor Don DeLillo é uma das obras mais curiosas do ano passado, uma adaptação retroativa de uma novela pós moderna (“movimento” literário) onde o filme já procura comentar nos “meta” comentários do livro.
A dramatização da vida da família nuclear americana dos anos 80, com a intenção de superdimensionar conflitos ordinários do personagens, por mais excêntricos que sejam, comuns.
A visão retroativa de Baumbach é o claro chamariz do filme e um tema visto nas produções Netflix já à alguns anos, mas como e por que adaptar “Ruído Branco” agora? Acredito que, por mais que Noah Baumbach não perceba, ele escreve um dos exemplos mais claros de espectrologia do cinema recente.
Assombrologia é um dos conceitos culturais mais aplicáveis para esse tipo de fenômeno, assim como o retrofuturismo e outras estéticas modernas as quais buscam o passado como referência. A hantologie (hauntology/rondologia) de Derrida é muito mais complexa do que apenas retorno ou persistência de um passado sociocultural, e sim o entendimento do presente apenas através de comparações com o passado e antecipando o futuro.
Derrida e rondologia é um projeto filosófico essencialmente binário, desde de sua concepção fonética/escrita. Hantologie o neologismo de Derrida o qual junta as palavras “hante” rondar/assombrar e “ontologie”, os estudos do ser, existência, realidade. Demonstrando sua própria teoria pela forma fonética/escrita. uma experiência espectral na própria palavra, a binariedade onde hantologie e ontologie tem a mesma pronúncia (com alguns tradutores para o português tentando salvar essa característica da palavra pelo uso da transliteração “rondologia”)
Ruído Branco corporifica conceitos primordiais da assombrologia de Fisher, os da origens perdidas (lost origins) e futuros cancelados (cancelled futures) ou futuros perdidos (lost futures).
A origem perdida de Baumbach de um anos oitenta limpos, os quais estão sendo destruídos pelos eventos catastróficos e hediondos vividos pelo personagem Jack Glaney (Adam Driver). Porém não apenas em conceitos, Noah busca reviver, ou melhor, é assombrado pela sua própria cinefilia.
O visível e afirmado pelo personagem Murray (Don Cheadle), professor de estudos de mídia, amor por clássicos do cinema americano. Também é visto em sua estrutura e texto (e sua presença mercadológica, como em seu trailer, imagens promocionais, etc) reproduzindo um “spielberguinismo”.
O spielberguinismo é demonstrado inicialmente através de escolhas adaptativas, onde o personagem Jack é tratado mais como um “average man” adentrando uma “aventura” do que o introspectivo e paranóico personagem do material fonte. Personagens crianças e suas reações para com os eventos “fantásticos” também fazem parte do DNA narrativo de Spielberg ou relacionamentos desfeitos os quais terminam melhor do que começaram. Todos possuem uma carga de paródia e de homenagem, assim como Frances Ha com a nouvelle vague e Histórias de Um Casamento com dramas de divórcio.
Paródias são intrinsecamente fantasmagóricas, assim como referências ou adaptações. O caráter espectral de Ruído Branco sempre esteve lá, sempre esteve no modo autoral de Noah Baumbach.
A Assombrologia de Mark Fisher também leva em conta os futuros perdidos. Para Fisher nós tentamos reviver antecipações do futuro ao voltar para concepções do próprio passado vindo do passado. Ruído Branco não passa de uma forma de utilizar uma estética oitentista para reviver os últimos anos.
A busca ou medo de um futuro, comuns na literatura da época e essencialmente presentes no romance de DeLillo, não estão mais lá. Não existe mais futuro, a única alternativa é o que vivemos agora. Ruído Branco é ainda mais deprimente do que Fisher descrevia. O filme de Noah Baumbach não é uma busca pelo passado como remakes, Stranger Things ou Blade Runner 2049 e sim o passado em busca do presente condenado.
Em O Inconsciente Perdido: “A Origem” de Christopher Nolan e em múltiplas aulas Mark Fisher gosta de utilizar Amnésia (2000) de Christopher Nolan como exemplo, em específico o protagonista da trama Lenny pela sua condição de amnésia anterógrada. Condição a qual torna o paciente incapaz de criar novas memórias. É possível comparar nosso modo cultural à amnésia de Lenny, incapaz de produzir novos futuros e comparar a “assinatura” de Baumbach, incapaz de produzir novos cinemas.
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Coma a Sobremesa Primeiro é um lugar para compartilhar minhas receitas favoritas.
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